O Gigante Adamastor
texto em prosa
João de Barros
texto em prosa
João de Barros
“(…)
Navegamos cada vez mais por diante, vencendo sempre com boa cara os perigos incessantes que surgiam.
Mas, cinco dias depois da aventura de Veloso, numa noite em que sopravam ventos prósperos, estando nós de vigia, uma nuvem imensa, que os ares escurecia, apareceu de súbito sobre as nossas cabeças.
Tão temerosa e carregada vinha que os nossos valentes corações se encheram de pavor!
O Mar bramia ao longe, como se batesse nalgum distante rochedo. Tudo infundia pavor. E nunca na nossa viagem tínhamos encontrado nuvem tão espessa e tão assustadora. Todas as tempestades pareciam vir dentro dela, para de lá saírem e nos assaltarem.
Erguendo a voz ao Céu, supliquei piedade a Deus.
Mal acabava de rezar ─ e logo uma figura surgiu no ar, robusta, fortíssima, gigantesca, de rosto pálido e zangado, de barba suja, de olhos encovados, e numa atitude feroz.
Os cabelos eram crespos e cheios de terra. A boca era negra. Os dentes amarelos.
Tão grandes eram os seus membros, que julguei ver um segundo colosso de Rodes, esse colosso que era uma das sete maravilhas do Mundo, de tal maneira alto que, diz-se, por baixo das suas pernas passavam à vontade enorme navios!...
Num tom de voz grossa, como a voz do mar profundo, começou a falar-nos.
Arrepiámo-nos todos, só de ouvir e de ver tão monstruosa criatura.
Disse então o Gigante, voltando-se para nós:
─ Ó Gente ousada mais de que nenhuma outra, que nunca descansais de lutas e combates, já que não temeis ultrapassar os limites onde ninguém mais chegou, e navegar por mares que me pertencem; já que vindes devassar os meus segredos escondidos, que nenhum humano deveria conhecer ─ ouvi agora os danos que prevejo para vós, para a vossa raça, que subjugará no entanto todo o largo Mar e a imensa Terra.
Ficai sabendo que todas as naus que fizerem esta viagem encontrarão ─ castigo merecido do seu atrevimento sem par! ─ as maiores dificuldades nestes meus domínios. E sofrerão o horror de tormentas desmedidas.
Punirei de tal modo a primeira armada que vier aqui depois da vossa frota, que os seus tripulantes mal sentirão talvez o perigo de me defrontarem. Mas hão de chorar depois do dano que eu lhes fizer…
Hei de me vingar de quem primeiro me descobriu, do vosso Bartolomeu Dias, fazendo-o naufragar aqui mesmo.
E outras vinganças imprevistas executarei…
D. Francisco de Almeida deixará aqui a sua glória e os troféus que arrancar aos Turcos. Manuel Sepúlveda verá aqui morrer os filhos queridos, verá aqui sofrer mil ferimentos a sua mulher, que os negros cafres hão de torturar e matar.
E tantos, tantos mais dos vossos, hão de experimentar a fúria do meu ódio pela audácia de me inquietarem, perturbando a solidão em que vivo e quero viver…
Era tão assustador o que me dizia o monstro horrendo, que eu o interrompi, perguntando-lhe quem ele era, e porque estava assim tão zangado.
Retorcendo a boca e os olhos, e lançando um espantoso brado, respondeu-me em voz pesada e amarga, como quem se aborrecera da pergunta feita:
─ Eu sou aquele oculto e grande Cabo, a quem vós tendes chamado Tormentório, e que ninguém, a não ser vós, Portugueses, algum dia conheceu e descobriu.
Sou um rude filho da Terra, e meu nome é Adamastor.
Andei na luta contra o meu Deus, contra Júpiter, e, depois, fiz-me capitão do mar e conquistei as ondas do Oceano.
E então me apaixonei por Tétis, princesa do mar e filha de Neptuno.
Ai de mim!... Sou tão feio, tão horrível, que ela nem me podia olhar!
Determinei conquistá-la à força e mandei-lhe participar esta minha intenção.
Tétis fingiu aceitar o meu pedido de casamento…
E julguei certa noite vê-la e supus que vinha visitar-me e combinar as nossas bodas.
Deslumbrado, corri como um doido para ela e comecei a abraçá-la.
Mas nem sei de tristeza como conte o que me sucedeu…
Julgando abraçar quem amava, achei-me de repente abraçado a um duro monte, coberto de mato bravio e espesso. Tétis transformara-se em rocha feia e fria!
Vendo um penedo a tocar a minha fronte, em lugar do roto angélico de Tétis, penedo me tornei também, de desespero.
Em penedos se me fizeram os ossos, a carne em terra inculta, e estes membros e esta figura que te horroriza estenderam-se pelo mar fora.
Enfim, a minha grandíssima estatura converteu-se neste remoto Cabo.
E, para redobrar as minhas mágoas, Tétis anda-me sempre cercando, transformada em onda.
E, como as ondas, que ora estão junto da praia, ora dela fogem para o mar alto, assim faz a princesa do Oceano: ─ ora está perto, ora longe de mim, nunca se deixando prender, nunca ficando tranquila entre os meus braços de pedra…
Assim contou a sua história o Gigante Adamastor… E logo de seguida a nuvem negra, que nos escondia o céu, desfez-se ─ e o Mar bramiu ao longe, muito ao longe…
De novo rezei a Deus, pedindo-lhe que nos guardasse dos perigos que o Adamastor anunciara.
Quando a manhã rompia, é que avistamos e torneamos o Cabo em que se tinha convertido o grande gigante.
(…)”
In Os Lusíadas de Luís de Camões contados às crianças e lembrados ao povo,
adaptação em prosa de João de Barros
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