domingo, 27 de maio de 2018

Gótico



Gótico 
de Fernando Guerreiro

É sempre com um sentimento confuso que se cruzam as ruas que nos conduzem ao sepulcro. Então o que mais impressiona é a viscosidade dos pavimentos onde continua a crescer uma forma literária de musgo. 
Extinto o horizonte, sobre tudo cai. 
Indolente. 
Um panejamento de  penumbra. 
Que lança-o a procurar a solução dos segredos na humidade
túmulos – ou partir para o Norte. Para ai se confundir com um “maistrom” de bruma! 

Sobre o lago um corvo envolve com as asas o pescoço do cisne de que jorra o sangue que lava o poente de tanta brancura.
“Conhece o branco, mas concentra-te no negro."
Segrega o vulto que o vento arranca do fundo em mausoléu da ruína. 
Haverá algum salão no meio de tanta violência, onde ainda se fala de literatura? Aceitará a natureza ser cortejada por palavras que contrariam os seus desígnios. No entanto, as verdadeiras migrações passam-se sempre na mente – em corredores por onde os homens arrastam redes em que conservam – fragmentado e erudito –
o fantasma do mundo.



terça-feira, 1 de maio de 2018

Felizmente há luar Porset



Pintura a óleo - Felizmente há luar Porset





"Matilde
(Com amizade)
- Ele ainda está vivo, António. Não devia ter vindo
de luto. Olhe: vesti a minha saia verde. Vê?

Sousa Falcão
- Não estou de luto por ele, Matilde, mas a noite passada não
pude dormir. Passei a noite a pensar, e, de madrugada, percebi que não sou quem julgava ser...

Matilde
- o melhor dos amigos, António.

Sousa Falcão
- Nem isso sou! Só é digno de ser amigo de alguém quem de
si próprio é amigo, Matilde, e eu odeio-me com toda a força que me resta.

Fosse eu digno da ideia que de mim mesmo tinha, e estava lá em baixo, em São Julião da Barra, ao lado de Gomes Freire, esperando a morte...

Quando os justos estão presos, só os injustos podem ficar fora das cadeias e eu, Matilde, vendi-me para estar, agora, aqui, a vê-lo morrer.

As ideias de Gomes Freire são também as minhas, mas ele vai ser
enforcado - e eu não.

Os motivos que os governadores tiveram para prendê-lo, também os tiveram para me prenderem a mim, mas a ele prenderam-no - e a mim não.

Faltou-me sempre coragem para estar na primeira linha...

Durante estes meses, duas vezes dei comigo à berma de lhe chamar louco, para desculpar a minha própria cobardia.

Há homens que obrigam todos os outros homens a reverem-se por
dentro...

É por mim que estou de luto, Matilde!

Por mim..."

Luís Sttau Monteiro
Felizmente há Luar